Uma análise sobre a importância dos conceitos bíblicos sobre respeito às autoridades, cidadania e reconhecimento da soberania divina
O Brasil, como boa parte do mundo, vive uma polarização política cada vez mais intensa entre a esquerda progressista e a direita dominionista. De um lado, uma ideologia que busca eliminar o cristianismo da esfera pública; do outro, uma que tenta impor o cristianismo como filosofia de Estado. Ambos os extremos estão equivocados.
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Para evitar confusões, é importante esclarecer o que se entende aqui por esses termos. Por "esquerda progressista", referimo-nos a um espectro político que defende pautas ligadas a ideologias secularistas, com forte ênfase em direitos individuais, políticas identitárias e, muitas vezes, uma tentativa de marginalizar o cristianismo na esfera pública. Já a "direita dominionista" faz referência a um grupo que busca transformar princípios cristãos em leis civis, promovendo uma espécie de teocracia informal, na qual o Estado se torna um instrumento para a imposição de uma moralidade cristã por via legislativa. Ambos os extremos acabam deturpando a missão da igreja e desvirtuando o papel do cristão na sociedade[1].
No meio desse conflito, muitos cristãos têm sido cooptados por uma ou outra dessas ideologias. Alguns tentam conciliar cristianismo e progressismo — algo impossível — enquanto outros sonham com um Estado cristão como solução.
Como conviver neste contexto?
Diante desse cenário, surge uma pergunta essencial: como um cristão deve lidar com a política e com os governantes? A teologia das Escrituras Sagradas nos orienta sobre como deve ser o relacionamento dos cristãos com a política.
A Bíblia traz diversos exemplos de homens e mulheres de Deus em interação com autoridades políticas: Daniel na Babilônia, José no Egito, Ester na Medo-Pérsia, entre outros. Contudo, aqui focaremos nos conselhos de Paulo a Timóteo.
Paulo, em seu "curso de teologia pastoral", enviado por carta a Timóteo, instruiu como o pastor de Éfeso e sua comunidade deveriam se comportar perante os governantes de seu tempo: “Antes de tudo, peço que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças em favor de todas as pessoas. Orem em favor dos reis e de todos os que exercem autoridade, para que vivamos vida mansa e tranquila, com toda piedade e respeito” (1 Timóteo 2:1-2).
Relação com as autoridades
Perceba que Paulo não propõe uma manifestação pública, mas uma ação discreta, espiritual e intercessora. Isso, por si só, já era revolucionário. Os governantes daquela época eram os romanos, que perseguiam os cristãos e dificultavam o culto ao Deus verdadeiro. E o imperador específico da época torna a orientação ainda mais impactante.
Paulo estava pedindo que a igreja orasse por ninguém menos que Nero, o imperador mais cruel e perseguidor de cristãos. Sua biografia já mostrava sua índole: “Nero Cláudio (37-68), imperador romano, nascido Lúcio Domício Enobarbo em 37 d.C. Embora Nero não estivesse originalmente na linha de sucessão para se tornar imperador de Roma, sua mãe, Agripina, era uma mulher ambiciosa que desejava ver seu filho no trono, a tal ponto que se casou com o imperador Cláudio e então começou a envenenar ou eliminar vários indivíduos-chave que estavam no caminho da ascensão de Nero ao poder[2]”.
Imagine o impacto dessa orientação aos cristãos de Éfeso. Mas Paulo tinha um objetivo claro: “Orem em favor dos reis e de todos os que exercem autoridade, para que vivamos vida mansa e tranquila, com toda piedade e respeito. Isto é bom e aceitável diante de Deus, nosso Salvador, que deseja que todos sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1 Timóteo 2:2-4).
Um comentarista bíblico reforça: “As orações públicas dos cristãos pelo imperador, bem como pelos oficiais locais e da província, demonstravam que eles eram bons cidadãos (Jr 29.7). A motivação de Paulo é não só preservar a paz (1 Timóteo 2:2), mas também proclamar o evangelho (I Timóteo 2:3,4)[3]”.
O foco era que, por meio da oração, o ambiente social se tornasse propício à pregação do Evangelho. A igreja de Éfeso não deveria ser militante política, nem promover movimentos para derrubar Nero. Sua missão era pregar o evangelho e interceder para que os líderes abrissem espaço à liberdade religiosa.
Oração e ação
Essa escolha de Paulo por começar com a oração revela uma profunda teologia da soberania de Deus. Orar não é sinônimo de alienação política, mas uma declaração de confiança no governo último de Deus. O trono mais importante não era o de Roma, mas o trono celestial. A intercessão era a forma mais coerente com a fé cristã de participar do destino da sociedade.
Contudo, orar e respeitar as autoridades não significa adotar uma postura de passividade diante das injustiças sociais ou do sofrimento humano. O cristão é chamado a exercer sua cidadania de maneira responsável, engajando-se em ações que promovam o bem comum, a justiça e a redução do sofrimento das pessoas ao seu redor. Como afirma Ellen G. White: " É privilégio de cada cristão exercer influência para o bem sobre cada um com quem se associa[4]". Portanto, a oração deve caminhar lado a lado com a prática cidadã responsável e solidária.
Hoje vivemos um desafio semelhante. “Mesmo que as autoridades sejam perversas, como era o caso do imperador Nero, devemos orar por elas. Ainda que pessoalmente sejam pessoas indignas, a posição que ocupam merece o nosso respeito e deve ser objeto das nossas orações.” [5]
Na disputa política entre direita e esquerda, o cristão tem um lado bem definido: o de cima. Mas o que significa estar do lado de cima? Significa escolher os valores do reino de Deus, colocando a justiça, a misericórdia, a verdade e o amor ao próximo acima de qualquer ideologia política. O reino de Deus é eterno e prevalecerá sobre todos os reinos terrenos, como anunciam os profetas Daniel e João em Apocalipse.
O cristão vive como cidadão do céu (Filipenses 3:20), consciente de que nenhum projeto político humano é capaz de representar plenamente os princípios divinos. Por isso, sua lealdade última é a Cristo e sua missão é ser sal e luz em qualquer contexto político.
Referências:
[1] Para uma análise mais detalhada das categorias ideológicas mencionadas, ver: HUNTER, James Davison. Culture Wars: The Struggle to Define America. New York: Basic Books, 1991; e GUSHEE, David P. After Evangelicalism: The Path to a New Christianity. Louisville: Westminster John Knox Press, 2020. O primeiro autor, sociólogo e pesquisador da Universidade de Virginia, é uma referência clássica sobre os conflitos culturais e as divisões político-religiosas nos Estados Unidos, fenômenos que influenciam também o cenário brasileiro. Já Gushee, teólogo e especialista em ética pública, oferece uma reflexão contemporânea sobre os impactos do progressismo e das tensões pós-evangélicas no relacionamento entre fé e política.
[2] EDWARDS, Jordon H. Nero Claudius. In: HAYKIN, Michael A. G. (org.). Dicionário Lexham de História da Igreja. Bellingham: Lexham Press, 2022.
[3] KEENER, Craig S. Comentário histórico-cultural da Bíblia: Novo Testamento. Tradução de José Gabriel Said. Edição ampliada. São Paulo: Vida Nova, 2017. p. 719.
[4] WHITE, Ellen G. Testemunhos para a Igreja. v. 2. Versão eletrônica. p. 231.
[5] LOPES, Hernandes Dias. 1 Timóteo: o pastor, sua vida e sua obra. Organização de Juan Carlos Martinez. 1. ed. (Comentários Expositivos Hagnos). São Paulo: Hagnos, 2014. p. 56.
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